Naqueles tempos longínquos, o comércio era vital para a sobrevivência das várias tribos nômades.
Uma cabaça de água por exemplo, poderia ter peso de ouro, dependendo das condições em que as pessoas se encontravam.
Havia um comerciante conhecido por toda aquela árida região. Seu nome era Odassap. Como filho mais velho de um pastor de ovelhas, ele esteve acostumado à uma vida dura.
Aprendeu desde cedo com seu pai a usar o leite e o queijo que produziam de suas cabras como moeda de troca para adquirir os mais diversos produtos: Tecidos, Pães e diversos objetos que eram trazidos pelos viajantes que constantemente cruzavam a região.
Seu pai lhe ensinara que cada gota de leite produzida por suas cabras era um imenso tesouro, pois delas provinha seu sustento e a vida para muitos viajantes famintos.
Com o passar de alguns verões, o jovem Odassap acabou sucedendo seu pai nos cuidados com suas terras.
Habilidoso com as palavras e com rápido raciocínio, Odassap percebeu que quanto mais bem trajado estava o viajante que passava por suas terras, menos ele estaria disposto a pagar um preço justo pelos seus produtos. Logo entendeu que o contrário também acontecia...
Ocorreu que um dia, quando estava negociando com um arauto de uma comitiva de um nobre povo ocidental, sentiu-se explorado, pois teve que abaixar muito seu preço.
Odassap muito relutou, mas acabou cedendo.... no fundo muito lhe irritou tamanha tagarelice e insistência daquele homem.
Esse episódio viria a mudar a forma como Odassap enxergaria suas futuras negociações.
Buscava sempre obter uma compensação por aquela negociação, que pelo seu ponto de vista, fora malfeita. Todos os viajantes que chegavam a suas terras acabavam tendo que deixar mais do que o justo em produtos e quinhões afim de satisfazer Odassap.
Mesmo quando já tinha acumulado alguns meses de subsistência, sua ganância o impelia para querer sempre mais.
Aquela terra então passou a ficar famosa pelos altos preços e pela dureza nas negociações, pois Odassap negava até mesmo um pouco de leite para aqueles que não tinham nada a oferecer.
Muito acumulou Odassap.... suas terras agora ofereciam um verdadeiro Oásis para quem pudesse pagar pelos seus serviços. Ele oferecia agora vários outros produtos, frutos de suas negociações lucrativas, em detrimento dos viajantes. Porém agora muitos dos antigos viajantes evitavam suas terras, pois não tinham posses para arcar com tais despesas.
Certo dia Odassap reconheceu aquele pequeno homem oriental e sua comitiva ao se aproximarem de suas terras. Logo ordenou aos seus serviçais que não o recebessem pelas portas da frente, mas pelos fundos, pois queria humilhá-lo.
O homem novamente pediu leite por um preço bem abaixo do que Odassap agora exigia. Foi então que Odassap pegou um jarro de leite e o derramou nas areias quentes, dizendo que preferia joga-lo fora do que ofertá-lo por preço tão vil.
O homem então se recolheu, virou as costas e retornou para sua comitiva.
Odassap em um primeiro momento sentiu-se vingado, porém em seu interior, sentiu uma dor.
Ao deitar-se a noite, lembrou do que seu pai havia lhe ensinado sobre cada gota de leite ser um precioso tesouro. Procurou ignorar tal pensamento já que agora sua terra possuía leite e mel além de suas necessidades e procurou dormir.
Um dia um dos viajantes lhe contou sobre uma grande feira em que eram negociados os mais diversos produtos. Verdadeiras preciosidades dos quatro cantos do mundo poderiam ser encontradas e nem os sultões tinham a oportunidade de possuir tanta beleza em seus palácios.
Odassap pensou que poderia expandir ainda mais seus serviços, aumentando assim seus lucros.
Mandou seus vassalos empilharem o que fosse possível em sua cáfila e seguiu viagem, sonhando com os lucros que obteria.
Odassap, no entanto esqueceu que quase nunca havia saído de suas terras, a não ser quando muito pequeno, e sempre acompanhado de seu pai. Logo notou que a travessia de um deserto não era algo simples... o calor era insuportável. O bafo quente que soprava em sua face parecia zombar de sua ingenuidade.
Eis que um dos camelos, com peso em excesso, acabou por tombar, ofegante, na areia quente.
Odassap foi até ele e tentou reerguê-lo a força, porém foi impossível. Enquanto tentava em vão levantar o camelo eis que outro também tombou. Logo após mais um...
Um a um todos os camelos tombaram. Odassap ordenou então que seus vassalos tomassem a carga dos camelos e remediassem aquela infeliz situação, porém ao perceberem a fúria de Odassap e a incapacidade de livrarem-se daquela funesta situação, logo abandonaram seu serviço.
Soltaram as cargas que estavam presas aos camelos, dando-lhes assim alguma sobrevida, e fugiram com eles. Alguns ainda se voltaram para Odassap, insistindo que voltasse com eles, porém ele bradou que jamais abandonaria sua carga e ainda que seriam castigados por tal traição.
E assim Odassap expulsou aos berros sua chance de salvação.
Os camelos desapareceram rapidamente no horizonte enquanto Odassap amontoava suas mercadorias, com medo que algo ficasse perdido em meio a areia. E elas formaram um pequeno monte em meio àquele deserto. Toda a sua carga, posses e tesouros, ali serviam para que ele pudesse escalá-las e tentasse enxergar um pouco mais longe.
Mas o que adianta enxergar mais longe no meio de um deserto se não há um ponto de referência para fixar o olhar?
Odassap então sentou. Como um sultão no alto de seu tesouro...
O pouco de água que ainda lhe restava estava acabando e ele logo estaria à mercê de sua própria sorte.
Ele pensava que, como estava em uma rota mercante, logo seria resgatado. Teria até que dispor de parte de seu tesouro ao negociar um transporte, mas com suas habilidades, o faria por preço ínfimo.
Ao cair da noite adormeceu, se acomodando em meio à tecidos finos e suaves ao toque, vindos do outro lado do mundo... ao acordar no outro dia, tomou seu último gole de água e comeu o que restava de suas provisões.
Achou estranho aquele caminho ainda estar tão deserto, porém se lembrou que, devido ao alto preço que ele cobrava, muitos viajantes agora evitavam aquela região, desviando por outras terras.
Ele se desesperou com esse pensamento. E se não passasse ninguém por ali? Como carregaria sozinho seu caro tesouro? Mesmo que decidisse retroceder ou avançar, como faria isso sozinho com tão pesada carga?
Então, naquele momento, pela primeira vez cogitou a possibilidade de abandonar sua carga. Porém tinha muito medo, pois teria que recomeçar sua vida do zero. Perderia todo o seu poderio, não teria mais servos, abriria mão de seu conforto, sua segurança e suas tão caras certezas.
Ficaria nu em meio a um deserto, cujo sol insistia em brilhar, queimando agora toda a sua antiga presunção.
Enfim cedeu. E pôs-se a caminhar na direção de sua terra natal, onde esperava encontrar ao menos um gole de água. Porém após dar dez passos, eis que fitou no horizonte um pequeno comboio. Estava salvo!
Essa pequena visão lhe fez voltar atrás e ele escalou novamente sua carga e vestiu toda a altivez que ainda lhe restava para esperar a chegada de seus salvadores.
Eis que a poucos metros de distância, ocorreu o mútuo reconhecimento. Odassap viu o pequeno oriental que logo veio em sua direção. Odassap ficou desesperado. Logo ele dentre todos os viajantes estava tomando aquela rota, naquele exato dia?
O pequeno homem então se aproximou, fazendo uma reverência de forma cômica para Odassap.
- Ó nobre “sultão”, que prazer temos em encontrá-lo novamente! Gostaria de adquirir um pouco de leite, porém julgo que não possui nenhum, pois caso tivesse, haveria de ter umedecido esses lábios tão ressecados.
Odassap ficou em silêncio, ainda tentando ostentar alguma autoridade. Sem mais delongas o homem falou novamente.
- Eis a minha proposta. Uma cabaça de água e uma montaria por essa sua montanha de quinquilharias.
Odassap apenas pôde balbuciar...
- Absurdo, poderia comprar um oásis todo e mil montarias com o que possuo sob meus pés!
O homem então lhe sorriu.
- Não quer comprar sua vida por preço tão vil?
- Essa é minha oferta final. Resolva, pois tenho pressa. Esse sol escaldante nos mata um pouco a cada respiração. Mas não preciso lhe dizer isso, você já o está sentindo por si só.
Odassap, perto de desfalecer, ainda conseguiu água suficiente para umedecer os olhos, mas logo acabou por descer de sua carga e apanhar com voracidade a cabaça de água que lhe era oferecida.
- Venha, aqui está sua montaria. Por acaso estamos seguindo para sua terra natal. És livre para nos acompanhar, se for de seu agrado.
E Odassap não teve nem energia para pensar. Subiu em sua montaria a se alinhou a caravana que já partia em direção ao oriente.
Após alguns passos Odassap notou que sua antiga carga nem ao menos fora tocada e que estava sendo deixada intacta para trás. Virou então para o homem e perguntou:
- Vocês que me venderam uma cabaça de água e uma montaria a preço tão alto, não se darão ao trabalho de ao menos vasculhar minha antiga carga para encontrar algo que lhes possa ser útil?
E o homem, sorrindo ternamente, respondeu:
- Um povo de viajantes muito antigo nós somos. Muita experiência na travessia do deserto nós temos. E aprendemos que é com pouco que se caminha ligeiro. Quem tem muito, muito tem a perder. Nós não queremos ter nada a perder. Quem tem algo a perder, vive preocupado em se proteger. Mas o único pensamento de quem quer atravessar o deserto deve ser o de chegar ao seu destino. Qualquer outro objetivo ou preocupação é uma carga que significa estagnação e morte.
- De antemão sabíamos que não teríamos condições de levar nada, pois já estamos preenchidos do necessário. Mas tivemos que negociar com você, isto é, vencê-lo em seu próprio jogo para fazê-lo entender que estavas a carregar um peso inútil.
- Agradeça a oportunidade de abandonar sua carga e, se for de seu agrado, nos ofereça um pouco de leite em suas terras. Pagaremos o preço costumeiro.
E dessa vez foi Odassap quem sorriu... um sorriso que não pousava em seus lábios há muito... muito tempo.
